ÉVORA MINHA CIDADE

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A MINHA HISTÓRIA DE VIDA



A MINHA HISTÓRIA DE VIDA



Às 15 horas e 30 minutos do dia 16 de Abril de 1951, começou a história da minha vida, pois foi nesta data que vim ao mundo, sendo filha, neta e também sobrinha de uma família que sempre me deu muito amor e carinho.

Após o meu nascimento foi-me diagnosticado um glaucoma congénito que me causou grande sofrimento físico mas, nem por isso, deixei de ser uma menina feliz e muito amada e a quem todos tratavam por “Minha Menina”.

Até aos 12 anos vivi quase sempre com os meus avós e tios paternos, família de algumas posses que nunca deixou que me faltasse nada. De todos os meus familiares paternos e maternos só guardo amor e boas recordações. Tantas coisas se passaram na minha vida, tão positivas, que até nas menos boas era feliz.

Aos 13 anos, por força de algumas circunstâncias, fui para a companhia dos meus pais. A partir daí a minha vida mudou! Eles moravam em Lisboa e, se calhar, por motivos da vida, resolveram voltar para Évora onde ainda hoje moram. O meu pai tinha uma vida que o obrigava a estar muito ausente, embora nos visitasse com frequência, não nos faltando com o necessário para viver. A minha mãe estava sempre conosco. Nessa altura eu já tinha um irmão e uma irmã bem mais novos, era tal a diferença que a minha irmã me tratava por mãe.

Eu e meus irmãos mais novos

Fomos e continuamos a ser muito unidos embora, como é normal, cada um seguiu o seu caminho mas continuamos a ser uma família. Tenho cinco sobrinhos a quem dedico muito amor.

Saltando no tempo e, seguindo o caminho que me foi destinado, encontrei pessoas amigas que me ajudaram a ultrapassar dificuldades próprias da época, a ter uma vida activa e em sociedade: participar em festas, excursões, eventos religiosos era, para mim, levar amor, bens necessários e palavras de conforto aos menos favorecidos, fazia-me bem sentir-me útil.

Dei e recebi catequese nesta minha página da vida em que fiz muitas amizades e nunca a minha deficiência foi problema.

Nada me fez sentir diferente, ainda hoje as amizades duram e as saudades apertam. Estou a escrever e não consigo fazer a escolha que desejaria, pois haveria muito para contar; talvez uma dia eu ainda tenha tempo para dar a conhecer a tudo o que fiz e não fiz e gostaria de ter feito, onde não cheguei por não ter condições para ir.

            Agora chegou o momento de falar de um dos grandes dias da minha vida: foi a 31 de Maio de 1964 (Domingo). Que dia tão desejado quando me foi anunciado o acontecimento, lembro-me de acordar cedo e com um desejo enorme que chegasse a hora e, pelas 10h30m deste Domingo, apadrinhada, pelas minhas amigas e amigos recebi, pelo Senhor Bispo de Évora o Sacramento do Crisma e Profissão de Fé. Senti uma tão grande felicidade que não tenho forma de traduzir, com palavras, o que senti. Foi um dia inesquecível, como eu tenho saudades…


O dia do Crisma e da Profissão de Fé – 31 de Maio de 1964

A Igreja de N.ª Sr.ª do Carmo está situada no largo das Portas de Moura, local muito visitado e apreciado nomeadamente pela sua arquitectura e beleza pois ali está uma das fontes que Évora tem para mostrar. A Igreja do Carmo é um monumento muito antigo e dono de uma grande beleza. Foi lá que passei muitas horas da minha vida rodeada de muitas atenções e conforto. Talvez por isso fosse a Igreja que escolhi para me casar.


Esta imagem representa as Portas de
Moura, largo onde se encontram alguns
edifícios de grande beleza arquitectónica,
nomeadamente o Paço Episcopal, Igreja do
Carmo e Tribunal Judicial de Évora.

Finalmente chegou a hora de realizar o sonho que até ali era o que mais desejava que acontecesse: aprender a ler e a escrever em Braille. Por ter nascido invisual não podia frequentar a escola dita normal porque o próprio sistema político o não permitia! Eu nem queria acreditar que, sabendo ler e escrever, era a realização de um sonho que me ia dar a minha independência para poder trabalhar – era uma porta que se abria para o mundo. Foi graças a um amigo que tudo isto aconteceu. O tempo foi passando e ninguém foge ao seu destino, ou seja, tiro quarta classe logo de seguida, com 17 anos . Depois de lutar contra muitas dificuldades fiz o meu exame na Direcção Escolar em Évora. Para mim era mais uma conquista…

A par disto começaram os sonhos e as muitas ilusões, que hoje acho serem próprias nestas idades. A palavra felicidade é tão fácil de dizer que até acreditamos nela. E foi atrás de um suposto amor, que aliás nunca existiu e, contra a vontade de meus pais, me casei aos dezoitos anos, com aquele que me proporcionou o facto de saber ler e escrever, pura gratidão? Talvez… Facto é que a 18 de Outubro de 1969 casei na Igreja de N.ª S.ª do Carmo, em Évora.


                           Eu, no dia do casamente em 18/10/1969

Teria sido para mim um dia inesquecível e o começo de uma nova vida para durar até que Deus nos separasse. A verdade é que nada foi assim, tudo terminou mal para todos. O meu casamento durou cerca de 15 anos, um período de vida remando contra a maré, talvez por incompatibilidades de feitios ou formas diferentes de estar na vida. Não vou falar mal nem bem, pois tudo acabou. Resta-me a alegria de ser mãe de dois filhos, que adoro, e por quem sempre lutei e dei tudo o que pensava ser melhor para eles. Como em tudo devo ter falhado em muitas coisas mas, em consciência, fiz o meu melhor, pois lutei sempre para que tivessem uma vida igual a qualquer criança da sua idade:


Os meus dois filhos na altura do meu divórcio
Aos dezanove anos chegou o primeiro emprego (operária fabril) que durou cerca de um ano, tempo que nunca vou esquecer pois era o começo de alguma independência. Foi o meu 1.º ano de trabalho onde fui bem recebida e aprendi uma vida nova pois, quando me desloquei à fábrica para pedir trabalho, levaram-me à direcção onde reiterei o meu pedido de admissão na fábrica. Foi-me perguntado o que é que eu sabia fazer, eu respondi “nada”! E pedi que me dessem uma oportunidade.

Passadas duas semanas fui chamada para trabalhar no turno da noite. A minha alegria foi tal que não encontro forma de me explicar. No mesmo turno trabalhava uma prima minha, tudo estava bem para mim pois era ela a minha companhia e me ajudava nas deslocações. Ainda hoje a nossa amizade é como se fôssemos duas irmãs. No primeiro dia tudo, para mim, era estranho, fui trabalhar com uma máquina de núcleos para bobines. Confesso que tudo para mim foi fácil e muito interessante, naquele trabalho fui a única a tirar prémio de produção.

Lembro-me de um dia um chefe alemão me ter dado um grande elogio que me deixou a chorar, disse-me ele que não ver era bom; para falar não precisava de parar o trabalho pois, pessoas como eu, a saber trabalhar, só davam lucro. Confesso que, na altura, não percebi o que ele me queria dizer, mas o tempo foi passando e eu aprendendo; a minha passagem por aquela fábrica foi tão rica em experiências para a minha vida que se voltasse a encontrar esse senhor ía agradecer-lhe o elogio.

Passado um ano de fortes emoções laborais, pela positiva, por pedido feito ao Sr. Presidente da então Caixa de Previdência de Évora, foi com a sua ajuda que entrei como telefonista em 4 de Outubro de 1961. Foi um trabalho que me deu muito gosto fazer.

Aprendi muito mais e entrei num mundo diferente e de grande responsabilidade pois, para além do serviço normal, também fazia o trabalho telefónico do Sr. Presidente. Isso exigia de mim muitas horas de serviço, tinha dias de entrar às nove horas e sair depois da meia-noite; mas fazia o que gostava; deu para conviver com todas as classes sociais, pois foi uma experiência inesquecível e de uma grande riqueza.

Mas a luta era grande e eu tinha de vencer pois, para ficar efectiva, o Ministério exigiu-me como habilitações o ciclo preparatório, tirado em dois anos. Foi mais uma batalha complicada, mas eu tinha que ganhar pois dela dependia o meu trabalho, certo é que nunca vou esquecer a ajuda de alguns bons amigos que estão para sempre guardados no meu coração. A colaboração muito especial da minha mãe e dos meus filhos que me deram a possibilidade e muito me ajudaram nas minhas deslocações pois, por ser invisual, não ando sozinha.

Fui telefonista seis anos, vivi e convivi com muitas pessoas e situações, umas boas outras menos mas, no meu tempo, foi o que mais gostei de fazer.

Em 1977, através de cursos e concursos dados na instituição e por mim frequentados com a grande e preciosa ajuda dos meus colegas, passei para a carreira administrativa. Pelo mesmo processo fui evoluindo na categoria; passei a trabalhar na correspondência, pois era o que mais se adaptava às minhas limitações. Embora não gostasse do que fazia tentei sempre dar o meu melhor e tudo o que sabia e podia; tive a sorte de encontrar bons amigos e colegas; tenho a certeza que ficou muito por fazer por faltas de meios técnicos compatíveis com os deficientes visuais, no entanto, tenho a consciência de que dei o meu melhor e tive de ser eu a adaptar-me ao trabalho que me era destinado, embora nunca tenho tido a oportunidade de realizar os meus objectivos porque as portas estavam quase sempre fechadas.

Foram mais de trinta anos da minha vida que, em troca do meu trabalho e dedicação, recebi de todos o que qualquer pessoa gosta de receber: respeito e muita solidariedade; fiz bons amigos e lembro-me de alguns com muita saudade. Hoje já estou aposentada e assim chegou ao fim a minha vida na Segurança Social de Évora, opção que fui obrigada a tomar pela minha própria dignidade, pois tudo ia mudar. Chegaram as novas tecnologias o que, para mim, era um mundo novo e totalmente desconhecido e sem meios para o conhecer, nestas condições eu ia deixar de ser a funcionária que era pois sei que ninguém pensou em mim, é com grande tristeza e amargura que digo de mim para mim “Não é justo tudo isto ter acontecido comigo, por que é que os deficientes têm de ser tratados desta maneira?”

Nunca tive resposta mas também nunca perdi a esperança de um dia poder entrar neste mundo novo de que tanto ouço falar e também muito leio com grande curiosidade e vontade de aprender pois sei que as tecnologias de hoje são, para mim e para todos, como um grande contributo para uma vida diferente com a possibilidade de chegar e de fazer coisas que nos ajudam todos os dias a viver o nosso dia-a-dia de maneira diferente e muito melhor.

Continuando a falar de alguns dos acontecimentos que mais me marcaram volto uns anos atrás no tempo para dizer, aos meus 33 anos fui, por força do destino, obrigada, talvez, a tomar a decisão mais complicada e difícil de tomar: o fim do meu casamento. Uma vida que falhou, um sonho que terminou em pesadelo, pois havia dois filhos a quem tudo tinha que ser bem explicado porque, abdicar deles, seria impossível. Há coisas tristes que nos marcam fortemente, pois há decisões que, quanto mais tarde se tomam, mais complicadas ficam, só podia ser assim.

No dia 15 de Outubro de 1984, deixei a minha casa, levando comigo os meus dois filhos, situação que eles aceitaram com uma grande compreensão. Fomos viver os três para uma casa cedida por um casal amigo e lá vivemos até eu ganhar a tutela definitiva no decorrer do meu divórcio. Enquanto isso eles estavam com o pai sempre que queriam. Não foi tarefa fácil, tive de entregar o caso a um advogado que me ajudou muito e que se interessou pela situação.

O tempo foi passando e deixando algumas marcas, como não podia deixar de ser. Resta-me o conforto dos meus filhos me terem sempre apoiado e, ainda hoje, já homens, somos uma família unida pelo amor e dedicação.

Depois de algum tempo surgiu na minha vida uma nova oportunidade de mudança de alguém que me trouxe amor e esperança de uma vida diferente, para mim e para os meus filhos. Foi uma decisão bem pensada de que nunca me arrependi.

A 7 de Dezembro de 1996 voltei a casar e fiquei muito feliz quando os meus filhos, já homens manifestaram o desejo de serem os padrinhos. Hoje, eu e o meu marido temos a nossa casa própria, vivendo um para o outro, juntos no bem e no mal. Somos uma família sempre perto, mesmo estando longe. Tentamos ser felizes e aceitar com boa disposição tudo o que a vida nos dá.


O meu segundo casamento em 07/12/1996

Temos um netinho de 5 anos que nos dá muita força e nos é muito dedicado, quando está junto de nós é a nossa alegria. O amor que sentimos por ele não tem explicação. Tenho muito amor pela minha família e peço todos os dias a Deus força para vencer as dificuldades e lhes poder dar segurança e alguma felicidade, o que não é nada fácil.

O nosso neto (Guilherme) de 5 anos de idade

São 19h30m do dia 29 de Janeiro de 2008, vou agora e, porque me foi sugerido, falar um pouco dos meus filhos e do meu neto, três pessoas a quem dedico a maior parte da minha atenção e amor. São a minha grande preocupação pois é por eles que luto a pensar no futuro, e tenho muitas vezes medo nem sei de quê!
Fui sempre uma mãe atenta, talvez até demais, tentei que tivessem uma vida igual a todas as crianças da sua idade. Eram eles que, muitas vezes, me diziam para não me preocupar.

Os meus filhos nunca me fizeram perguntas nem falaram da minha deficiência. Hoje, ambos são homens e cada um já tem a sua vida própria, foram sempre e continuam a ser dedicados e atentos comigo. Sempre tive, com os meus filhos, uma relação muito forte e profunda. Falamos e partilhamos a nossa vida de tal forma que me esqueço de quem sou e passo, naqueles momentos, a ser a amiga e conselheira. Como sempre, desde bem pequenos, ainda estão comigo sempre que seja necessário pois dão-me todo o apoio que lhes é possível. Cada um seguiu o seu caminho, mas como uma família unida.

                                             
                                                                         Filho mais velho              

                                              
                                                                  Filho mais novo (pai do neto)

O Luís tem 36 anos e o Paulo 33 e já é pai. Dia 26 de Março de 2002 foi um dos dias de grande felicidade, fui avó. Não há forma nem palavras que expliquem o que senti a partir desse dia. Muita coisa mudou nas nossas vidas! O Guilherme tem 5 anos e desde que nasceu deu-nos tudo o que nos faltava. Adora o avô e estar connosco. Tivemos o privilégio de o acompanhar de perto pois, quando está na nossa companhia, mostra uma tão grande felicidade que nos enche a alma e nos aquece o coração.

O Gui é um menino muito inteligente e curioso, temos grandes conversas e boas brincadeiras, pois tudo lhe desperta a atenção e tem de ter um porquê. Numa das nossas muitas conversas, perguntou-me ele “avó, tu és cega, não és?” E eu respondi: “sou, mas não faz mal, a avó gosta muito de ti, não fiques triste porque é só um doi-doi”, e ele respondeu: “avó, o Gui gosta muito de ti, vai ajudar-te e vai ser sempre teu amigo”. “Não fiques triste, está bem”?, “quando o Gui ser um homem como o pai, compra um carro e leva-te para passear e quando tu tiveres dói-doi diz ao Gui que eu digo ao Dr. que as avós e os avôs não podem estar doentes”.
As nossas conversas são longas e são muitas as nossas brincadeiras, acabam sempre com um grande e forte abraço e beijinhos sem conta. O nosso neto surpreende-nos todos os dias 
Generosa Batista. 
  Março de 2008  .


 




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